Diante das concepções
descontinuístas da razão, podemos fazer duas perguntas:
1ª. Se, em cada época, por
motivos históricos e teóricos determinados, a razão
muda inteiramente, o que queremos
dizer quando continuamos empregando a
palavra razão?
2ª. Se, em cada ciência, cada filosofia,
cada teoria, cada expressão do
pensamento, nada há em comum com
as anteriores e as posteriores, por que
dizemos que algumas são racionais
e outras não o são? A razão não seria, afinal,
um mito que nossa cultura
inventou para si mesma?
Podemos responder à primeira
pergunta dizendo que continuamos a falar em
razão, apesar de haver muitas e
diferentes “razões”, porque mantemos uma idéia
que é essencial à noção ocidental
de razão. Que idéia é essa? A de que a
realidade, o mundo natural e
cultural, os seres humanos, sua ações e obras têm
sentido e que esse
sentido pode ser conhecido. É o ideal do conhecimento
objetivo que é conservado quando
continuamos a falar em razão.
Com relação à segunda pergunta,
podemos dizer que, em cada época, os
membros da sociedade e da cultura
ocidentais julgam a validade da própria razão
como capaz ou incapaz de realizar
o ideal do conhecimento. Esse julgamento
pode ser realizado de duas
maneiras.
A primeira maneira ou o primeiro
critério de avaliação da capacidade racional é o
da coerência interna de um
pensamento ou de uma teoria. Ou seja, quando um
pensamento ou uma teoria se
propõem a oferecer um conhecimento,
simultaneamente também oferecem
os princípios, os conceitos e os procedimentos que sustentam a explicação
apresentada. Quando não há
compatibilidade entre a
explicação e os princípios, os conceitos e os
procedimentos oferecidos, dizemos
que não há coerência e que o pensamento ou
a teoria não são racionais. A
razão é, assim, o critério de que dispomos para a
avaliação, o instrumento para
julgar a validade de um pensamento ou de uma
teoria, julgando sua coerência ou
incoerência consigo mesmos.
A segunda maneira é diferente da
anterior. Agora, pergunta-se se um pensamento
ou uma teoria contribuem ou não
para que os seres humanos conheçam e
compreendam as circunstâncias em
que vivem, contribuem ou não para alterar
situações que os seres humanos
julgam inaceitáveis ou intoleráveis, contribuem
ou não para melhorar as condições
em que os seres humanos vivem. Assim, a
razão, além de ser o critério
para avaliar os conhecimentos, é também um
instrumento crítico para
compreendermos as circunstâncias em que vivemos, para
mudá-las ou melhorá-las. A razão
tem um potencial ativo ou transformador e por
isso continuamos a falar nela e a desejá-la.
Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 2, Capítulo 5.
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