Quando estudamos a razão, vimos os problemas criados pelo inatismo e pelo
empirismo. Vimos também a “revolução
copernicana” de Kant, distinguindo as
estruturas ou formas e categorias
da razão e os conteúdos trazidos a ela pela
experiência, isto é, a distinção
entre os elementos a priori e a posteriori no
conhecimento.
Com a revolução copernicana
kantiana, uma distinção muito importante passou a
ser feita na Filosofia: a
distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos.
Um juízo é analítico quando o
predicado ou os predicados do enunciado nada
mais são do que a explicitação do
conteúdo do sujeito do enunciado. Por
exemplo: quando digo que o
triângulo é uma figura de três lados, o predicado
“três lados” nada mais é do que a
análise ou a explicitação do sujeito “triângulo”.
Quando, porém, entre o sujeito e
o predicado se estabelece uma relação na qual o
predicado me dá informações novas
sobre o sujeito, o juízo é sintético, isto é,
formula uma síntese entre um
predicado e um sujeito. Assim, por exemplo,
quando digo que o calor é a causa
da dilatação dos corpos, o predicado “causa da
dilatação” não está
analiticamente contido no sujeito “calor”. Se eu dissesse que
o calor é uma medida de
temperatura dos corpos, o juízo seria analítico, mas
quando estabeleço uma relação
causal entre o sujeito e o predicado, como no
caso da relação entre “calor” e “dilatação
dos corpos”, tenho uma síntese, algo
novo me é dito sobre o sujeito
através do predicado.
Para Kant, os juízos analíticos
são as verdades de razão de Leibniz, mas os juízos
sintéticos teriam que ser
considerados verdades de fato. No entanto, vimos que os
fatos estão sob a suspeita de
Hume, isto é, fatos seriam hábitos associativos e
repetitivos de nossa mente,
baseados na experiência sensível e, portanto, um
juízo sintético jamais poderia
pretender ser verdadeiro de modo universal e
necessário.
Que faz Kant? Introduz a idéia de
juízos sintéticos a priori, isto é, de juízos
sintéticos cuja síntese depende
da estrutura universal e necessária de nossa razão
e não da variabilidade individual
de nossas experiências. Os juízos sintéticos a
priori exprimem o modo
como necessariamente nosso pensamento relaciona e
conhece a realidade. A
causalidade, por exemplo, é uma síntese a priori que
nosso entendimento formula para
as ligações universais e necessárias entre
causas e efeitos,
independentemente de hábitos psíquicos associativos.
Todavia, vi mos também que Kant
afirma que a realidade que conhecemos
filosoficamente e cientificamente
não é a realidade em si das coisas, mas a
realidade tal como é estruturada
por nossa razão, tal como é organizada, explicada e interpretada pelas
estruturas a priori do sujeito do conhecimento. A
realidade são nossas idéias
verdadeiras e o kantismo é um idealismo.
Vimos também, ao estudar a
Filosofia contemporânea, que o filósofo Husserl
criou uma filosofia chamada
fenomenologia. Essa palavra vem diretamente da
filosofia kantiana. Com efeito,
Kant usa duas palavras gregas para referir-se à
realidade: a palavra noumenon,
que significa a realidade em si, racional em si,
inteligível em si; e a palavra phainomenon
(fenômeno), que significa a realidade
tal como se mostra ou se
manifesta para nossa razão ou para nossa consciência.
Kant afirma que só podemos
conhecer o fenômeno (o que se apresenta para a
consciência, de acordo com a
estrutura a priori da própria consciência) e que não
podemos conhecer o noumenon (a
coisa em si). Fenomenologia significa:
conhecimento daquilo que se
manifesta para nossa consciência, daquilo que está
presente para a consciência ou
para a razão, daquilo que é organizado e explicado
a partir da própria estrutura da
consciência. A verdade se refere aos fenômenos e
os fenômenos são o que a
consciência conhece.
Ora, pergunta Husserl, o que é o
fenômeno? O que é que se manifesta para a
consciência? A própria
consciência. Conhecer os fenômenos e conhecer a
estrutura e o funcionamento
necessário da consciência são uma só e mesma
coisa, pois é a própria
consciência que constitui os fenômenos.
Como ela os constitui? Dando
sentido às coisas. Conhecer é conhecer o sentido
ou a significação das coisas tal
como esse sentido foi produzido ou essa
significação foi produzida pela
consciência. O sentido, ou significação, quando
universal e necessário, é a essência
das coisas. A verdade é o conhecimento das
essências universais e
necessárias ou o conhecimento das significações
constituídas pela consciência
reflexiva ou pela razão reflexiva.
Na perspectiva idealista, seja
ela kantiana ou husserliana, não podemos mais
dizer que a verdade é a
conformidade do pensamento com as coisas ou a
correspondência entre a idéia e o
objeto. A verdade será o encadeamento interno
e rigoroso das idéias ou dos
conceitos (Kant) ou das significações (Husserl), sua
coerência lógica e sua
necessidade. A verdade é um acontecimento interno ao
nosso intelecto ou à nossa
consciência.
Para Kant e para Husserl, o erro
e a falsidade encontram-se no realismo, isto é, na
suposição de que os conceitos ou
as significações se refiram a uma realidade em
si, independente do sujeito do
conhecimento. Esse erro e essa falsidade, Kant
chamou de dogmatismo e
Husserl, de atitude natural ou tese natural do
mundo.
Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 3, Capítulo 3. (pág. 129 a 130)
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