Se observarmos a concepção grega
da verdade (aletheia), notaremos que nela as
coisas ou o Ser é o
verdadeiro ou a verdade. Isto é, o que existe e manifesta sua existência para
nossa percepção e para nosso pensamento é verdade ou
verdadeiro. Por esse motivo, os
filósofos gregos perguntam: Como o erro, o falso
e a mentira são possíveis? Em
outras palavras, como podemos pensar naquilo que
não é, não existe, não tem realidade,
pois o erro, o falso e a mentira só podem
referir-se ao não-Ser? O Ser é o
manifesto, o visível para os olhos do corpo e do
espírito, o evidente. Errar,
falsear ou mentir, portanto, é não ver os seres tais
como são, é não falar deles tais
como são. Como é isso possível?
A resposta dos gregos é dupla:
1. o erro, o falso e a mentira se
referem à aparência superficial e ilusória das
coisas ou dos seres e surgem
quando não conseguimos alcançar a essência das
realidades (como no poema de
Mário de Andrade, em que a garoa-neblina cria
um véu que encobre, oculta e
dissimula as coisas e as torna confusas, indistintas);
são um defeito ou uma falha de
nossa percepção sensorial ou intelectual;
2. o erro, o falso e a mentira
surgem quando dizemos de algum ser aquilo que ele
não é, quando lhe atribuímos
qualidades ou propriedades que ele não possui ou
quando lhe negamos qualidades ou
propriedades que ele possui. Nesse caso, o
erro, o falso e a mentira se
alojam na linguagem e acontecem no momento em
que fazemos afirmações ou
negações que não correspondem à essência de
alguma coisa. O erro, o falso e a
mentira são um acontecimento do juízo ou do
enunciado. [Juízo é uma
proposição afirmativa (“S é P”) ou negativa (“S não é
P”) pela qual
atribuo ou nego a um sujeito S um predicado P. O predicado é um
atributo afirmado ou negado do
sujeito e faz parte (ou não) de sua essência.]
Se eu formular o seguinte juízo: “Sócrates
é imortal”, o erro se encontra na
atribuição do predicado “imortal”
a um sujeito “Sócrates”, que não possui a
qualidade ou a propriedade da
imortalidade. O erro é um engano do juízo quando
desconhecemos a essência de um
ser. O falso e a mentira, porém, são juízos
deliberadamente errados, isto é,
conhecemos a essência de alguma coisa, mas
deliberadamente emitimos um juízo
errado sobre ela.
O que é a verdade? É a
conformidade entre nosso pensamento e nosso juízo e as
coisas pensadas ou formuladas.
Qual a condição para o conhecimento
verdadeiro? A evidência, isto é,
a visão intelectual da essência de um ser. Para
formular um juízo verdadeiro
precisamos, portanto, primeiro conhecer a essência,
e a conhecemos ou por intuição,
ou por dedução, ou por indução.
A verdade exige que nos
libertemos das aparências das coisas; exige, portanto,
que nos libertemos das opiniões
estabelecidas e das ilusões de nossos órgãos dos
sentidos. Em outras palavras, a
verdade sendo o conhecimento da essência real e
profunda dos seres é sempre
universal e necessária, enquanto as opiniões variam
de lugar para lugar, de época
para época, de sociedade para sociedade, de pessoa
para pessoa. Essa variabilidade e
inconstância das opiniões provam que a
essência dos seres não está
conhecida e, por isso, se nos mantivermos no plano
das opiniões, nunca alcançaremos a verdade.
O mesmo deve ser dito sobre
nossas impressões sensoriais, que variam conforme
o estado do nosso corpo, as
disposições de nosso espírito e as condições em que
as coisas nos aparecem. Pelo
mesmo motivo, devemos ou abandonar as idéias
formadas a partir de nossa
percepção, ou encontrar os aspectos universais e
necessários da experiência
sensorial que alcancem parte da essência real das
coisas. No primeiro caso, somente
o intelecto (espírito) vê o Ser verdadeiro. No
segundo caso, o intelecto
purifica o testemunho sensorial.
Por exemplo, posso perceber que
uma flor é branca, mas se eu estiver doente, a
verei amarela; percebo o Sol
muito menor do que a Terra, embora ele seja maior
do que ela. Apesar desses enganos
perceptivos, observo que toda percepção
percebe qualidades nas coisas
(cor, tamanho, por exemplo) e, portanto, as
qualidades pertencem à essência
das próprias coisas e fazem parte da verdade
delas.
Quando, porém, examinamos a idéia
latina da verdade como veracidade de um
relato, observamos que, agora, o
problema da verdade e do erro, do falso e da
mentira deslocou-se diretamente
para o campo da linguagem. O verdadeiro e o
falso estão menos no ato de ver
(com os olhos do corpo ou com os olhos do
espírito) e mais no ato de dizer.
Por isso, a pergunt a dos filósofos, agora, é
exatamente contrária à anterior,
ou seja, pergunta-se: Como a verdade é possível?
De fato, se a verdade está no
discurso ou na linguagem, não depende apenas do
pensamento e das próprias coisas,
mas também de nossa vontade para dizê-la,
silenciá-la ou deformá-la. O
verdadeiro continua sendo tomado como
conformidade entre a idéia e as
coisas – no caso, entre o discurso ou relato e os
fatos acontecidos que estão sendo
relatados -, mas depende também de nosso
querer.
Esse aspecto voluntário da
verdade torna-se de grande importância com o
surgimento da Filosofia cristã
porque, com ela, é introduzida a idéia de vontade
livre ou de livre-arbítrio, de
modo que a verdade está na dependência não só da
conformidade entre relato e fato,
mas também da boa-vontade ou da vontade que
deseja o verdadeiro.
Ora, o cristianismo afirma que a
vontade livre foi responsável pelo pecado
original e que a vontade foi
pervertida e tornou-se má-vontade. Assim sendo, a
mentira, o erro e o falso
tenderiam a prevalecer contra a verdade. Nosso intelecto
ou nosso pensamento é mais fraco
do que nossa vontade e esta pode forçá-lo ao
erro e ao falso.
Essas questões foram
posteriormente examinadas pelos filósofos modernos, os
filósofos do Grande Racionalismo
Clássico, que introduzirão a exigência de
começar a Filosofia pelo exame de
nossa consciência – vontade, intelecto,
imaginação, memória -, para saber
o que podemos conhecer realmente e quais os
auxílios que devem ser oferecidos
ao nosso intelecto para que controle e domine
nossa vontade e a submeta ao verdadeiro.
É preciso começar liberando nossa
consciência dos preconceitos, dos
dogmatismos da opinião e da
experiência cotidiana. Essa consciência purificada,
que é o sujeito do conhecimento,
poderá, então, alcançar as evidências (por
intuição, dedução ou indução) e
formular juízos verdadeiros aos quais a vontade
deverá submeter-se.
Tanto os antigos quanto os
modernos afirmam que:
1. a verdade é
conhecida por evidência (a evidência pode ser obtida por intuição,
dedução ou indução);
2. a verdade se
exprime no juízo, onde a idéia está em conformidade com o ser
das coisas ou com os fatos;
3. o erro, o falso
e a mentira se alojam no juízo (quando afirmamos de uma coisa
algo que não pertence à sua
essência ou natureza, ou quando lhe negamos algo
que pertence necessariamente à
sua essência ou natureza);
4. as causas do
erro e do falso são as opiniões preconcebidas, os hábitos, os
enganos da percepção e da
memória;
5. a causa do falso
e da mentira, para os modernos, também se encontra na
vontade, que é mais poderosa do
que o intelecto ou o pensamento, e precisa ser
controlada por ele;
6. uma verdade, por
referir-se à essência das coisas ou dos seres, é sempre
universal e necessária e
distingue-se da aparência, pois esta é sempre particular,
individual, instável e mutável;
7. o pensamento se
submete a uma única autoridade: a dele própria com
capacidade para o verdadeiro.
Quando os filósofos antigos e
modernos afirmam que a verdade é conformidade
ou correspondência entre a idéia
e a coisa e entre a coisa e a idéia (ou entre a
idéia e o ideado), não estão
dizendo que uma idéia verdadeira é uma cópia, um
papel carbono, um “xerox” da
coisa verdadeira. Idéia e coisa, conceito e ser,
juízo e fato não são entidades de
mesma natureza e não há entre eles uma relação
de cópia. O que os filósofos
afirmam é que a idéia conhece a estrutura da coisa,
conhece as relações internas
necessárias que constituem a essência da coisa e as
relações e nexos necessários que
ela mantém com outras. Como disse um
filósofo, a idéia de cão não late
e a de açúcar não é doce. A idéia é um ato
intelectual; o ideado, uma
realidade externa conhecida pelo intelecto.
A idéia verdadeira é o
conhecimento das causas, qualidades, propriedades e
relações da coisa conhecida, e da
essência dela ou de seu ser íntimo e necessário.
Quando o pensamento conhece, por
exemplo, o fenômeno da queda livre dos
corpos (formulado pela física de
Galileu), isto não significa que o pensamento se
torne um corpo caindo no vácuo,
mas sim que conhece as causas desse movimento e as formula em conceitos
verdadeiros, isto é, formula as leis do
movimento.
Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 3, Capítulo 3. (pág. 125 a 129)
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