domingo, 7 de junho de 2015

Uma outra teoria da verdade

 
Quando estudamos a razão, vimos os problemas criados pelo inatismo e pelo
empirismo. Vimos também a “revolução copernicana” de Kant, distinguindo as
estruturas ou formas e categorias da razão e os conteúdos trazidos a ela pela
experiência, isto é, a distinção entre os elementos a priori e a posteriori no
conhecimento.
Com a revolução copernicana kantiana, uma distinção muito importante passou a
ser feita na Filosofia: a distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos.
Um juízo é analítico quando o predicado ou os predicados do enunciado nada
mais são do que a explicitação do conteúdo do sujeito do enunciado. Por
exemplo: quando digo que o triângulo é uma figura de três lados, o predicado
“três lados” nada mais é do que a análise ou a explicitação do sujeito “triângulo”.
Quando, porém, entre o sujeito e o predicado se estabelece uma relação na qual o
predicado me dá informações novas sobre o sujeito, o juízo é sintético, isto é,
formula uma síntese entre um predicado e um sujeito. Assim, por exemplo,
quando digo que o calor é a causa da dilatação dos corpos, o predicado “causa da
dilatação” não está analiticamente contido no sujeito “calor”. Se eu dissesse que
o calor é uma medida de temperatura dos corpos, o juízo seria analítico, mas
quando estabeleço uma relação causal entre o sujeito e o predicado, como no
caso da relação entre “calor” e “dilatação dos corpos”, tenho uma síntese, algo
novo me é dito sobre o sujeito através do predicado.
Para Kant, os juízos analíticos são as verdades de razão de Leibniz, mas os juízos
sintéticos teriam que ser considerados verdades de fato. No entanto, vimos que os
fatos estão sob a suspeita de Hume, isto é, fatos seriam hábitos associativos e
repetitivos de nossa mente, baseados na experiência sensível e, portanto, um
juízo sintético jamais poderia pretender ser verdadeiro de modo universal e
necessário.
Que faz Kant? Introduz a idéia de juízos sintéticos a priori, isto é, de juízos
sintéticos cuja síntese depende da estrutura universal e necessária de nossa razão
e não da variabilidade individual de nossas experiências. Os juízos sintéticos a
priori exprimem o modo como necessariamente nosso pensamento relaciona e
conhece a realidade. A causalidade, por exemplo, é uma síntese a priori que
nosso entendimento formula para as ligações universais e necessárias entre
causas e efeitos, independentemente de hábitos psíquicos associativos.
Todavia, vi mos também que Kant afirma que a realidade que conhecemos
filosoficamente e cientificamente não é a realidade em si das coisas, mas a
realidade tal como é estruturada por nossa razão, tal como é organizada, explicada e interpretada pelas estruturas a priori do sujeito do conhecimento. A
realidade são nossas idéias verdadeiras e o kantismo é um idealismo.
Vimos também, ao estudar a Filosofia contemporânea, que o filósofo Husserl
criou uma filosofia chamada fenomenologia. Essa palavra vem diretamente da
filosofia kantiana. Com efeito, Kant usa duas palavras gregas para referir-se à
realidade: a palavra noumenon, que significa a realidade em si, racional em si,
inteligível em si; e a palavra phainomenon (fenômeno), que significa a realidade
tal como se mostra ou se manifesta para nossa razão ou para nossa consciência.
Kant afirma que só podemos conhecer o fenômeno (o que se apresenta para a
consciência, de acordo com a estrutura a priori da própria consciência) e que não
podemos conhecer o noumenon (a coisa em si). Fenomenologia significa:
conhecimento daquilo que se manifesta para nossa consciência, daquilo que está
presente para a consciência ou para a razão, daquilo que é organizado e explicado
a partir da própria estrutura da consciência. A verdade se refere aos fenômenos e
os fenômenos são o que a consciência conhece.
Ora, pergunta Husserl, o que é o fenômeno? O que é que se manifesta para a
consciência? A própria consciência. Conhecer os fenômenos e conhecer a
estrutura e o funcionamento necessário da consciência são uma só e mesma
coisa, pois é a própria consciência que constitui os fenômenos.
Como ela os constitui? Dando sentido às coisas. Conhecer é conhecer o sentido
ou a significação das coisas tal como esse sentido foi produzido ou essa
significação foi produzida pela consciência. O sentido, ou significação, quando
universal e necessário, é a essência das coisas. A verdade é o conhecimento das
essências universais e necessárias ou o conhecimento das significações
constituídas pela consciência reflexiva ou pela razão reflexiva.
Na perspectiva idealista, seja ela kantiana ou husserliana, não podemos mais
dizer que a verdade é a conformidade do pensamento com as coisas ou a
correspondência entre a idéia e o objeto. A verdade será o encadeamento interno
e rigoroso das idéias ou dos conceitos (Kant) ou das significações (Husserl), sua
coerência lógica e sua necessidade. A verdade é um acontecimento interno ao
nosso intelecto ou à nossa consciência.
Para Kant e para Husserl, o erro e a falsidade encontram-se no realismo, isto é, na
suposição de que os conceitos ou as significações se refiram a uma realidade em
si, independente do sujeito do conhecimento. Esse erro e essa falsidade, Kant
chamou de dogmatismo e Husserl, de atitude natural ou tese natural do
mundo.

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 3, Capítulo 3. (pág. 129 a 130) 

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