terça-feira, 10 de março de 2015

Por que ainda falamos em razão?



Diante das concepções descontinuístas da razão, podemos fazer duas perguntas:
1ª. Se, em cada época, por motivos históricos e teóricos determinados, a razão
muda inteiramente, o que queremos dizer quando continuamos empregando a
palavra razão?
2ª. Se, em cada ciência, cada filosofia, cada teoria, cada expressão do
pensamento, nada há em comum com as anteriores e as posteriores, por que
dizemos que algumas são racionais e outras não o são? A razão não seria, afinal,
um mito que nossa cultura inventou para si mesma?
Podemos responder à primeira pergunta dizendo que continuamos a falar em
razão, apesar de haver muitas e diferentes “razões”, porque mantemos uma idéia
que é essencial à noção ocidental de razão. Que idéia é essa? A de que a
realidade, o mundo natural e cultural, os seres humanos, sua ações e obras têm
sentido e que esse sentido pode ser conhecido. É o ideal do conhecimento
objetivo que é conservado quando continuamos a falar em razão.
Com relação à segunda pergunta, podemos dizer que, em cada época, os
membros da sociedade e da cultura ocidentais julgam a validade da própria razão
como capaz ou incapaz de realizar o ideal do conhecimento. Esse julgamento
pode ser realizado de duas maneiras.
A primeira maneira ou o primeiro critério de avaliação da capacidade racional é o
da coerência interna de um pensamento ou de uma teoria. Ou seja, quando um
pensamento ou uma teoria se propõem a oferecer um conhecimento,
simultaneamente também oferecem os princípios, os conceitos e os procedimentos que sustentam a explicação apresentada. Quando não há
compatibilidade entre a explicação e os princípios, os conceitos e os
procedimentos oferecidos, dizemos que não há coerência e que o pensamento ou
a teoria não são racionais. A razão é, assim, o critério de que dispomos para a
avaliação, o instrumento para julgar a validade de um pensamento ou de uma
teoria, julgando sua coerência ou incoerência consigo mesmos.
A segunda maneira é diferente da anterior. Agora, pergunta-se se um pensamento
ou uma teoria contribuem ou não para que os seres humanos conheçam e
compreendam as circunstâncias em que vivem, contribuem ou não para alterar
situações que os seres humanos julgam inaceitáveis ou intoleráveis, contribuem
ou não para melhorar as condições em que os seres humanos vivem. Assim, a
razão, além de ser o critério para avaliar os conhecimentos, é também um
instrumento crítico para compreendermos as circunstâncias em que vivemos, para
mudá-las ou melhorá-las. A razão tem um potencial ativo ou transformador e por
isso continuamos a falar nela e a desejá-la.

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 2, Capítulo 5.

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