segunda-feira, 6 de abril de 2015

Razão e realidade



Os dois critérios vistos acima – a coerência interna de um pensamento ou de uma
teoria e o potencial crítico-transformador dos conhecimentos – também nos
ajudam a perceber quando a razão vira mito e deixa de ser razão.
Analisemos como exemplo as teorias que defendem o racismo e que são tidas
como científicas ou racionais.
As teorias racistas se apresentam usando princípios, conceitos e procedimentos
(ou métodos) racionais, científicos. Fazem pesquisas biológicas, genéticas,
químicas, sociológicas; usam a indução e a dedução; definem conceitos, inferem
conclusões dos dados obtidos por experiência e por cálculos estatísticos. Usando
tais procedimentos, fazem demonstrações e por meio delas pretendem provar:
1. que existem raças;
2. que as raças são biológica e geneticamente diferentes;
3. que há raças atrasadas e adiantadas, inferiores e superiores;
4. que as raças atrasadas e inferiores não são capazes, por exemplo, de
desenvolvimento intelectual e estão naturalmente destinadas ao trabalho manual,
pois sua razão é muito pequena e não conseguem compreender as idéias mais
complexas e avançadas;
5. que as raças adiantadas e superiores estão naturalmente destinadas a dominar o
planeta e que, se isso for necessário para seu bem, têm o direito de exterminar as
raças atrasadas e inferiores;
6. que, para o bem das raças inferiores e das superiores, deve haver segregação
racial (separação dos locais de moradia, de trabalho, de educação, de lazer, etc.),
pois a não-segregação pode fazer as inferiores arrastarem as superiores para seu baixo nível, assim como pode fazer as superiores tentarem inutilmente melhorar
o nível das inferiores.
Ora, a razão pode demonstrar que a “racionalidade ” racista é irracional e que está
a serviço da violência, da ignorância e da destruição.
Assim, a biologia e a genética demonstram que há diferenças na formação
anatômico-fisiológica dos seres humanos em decorrência de diferenças internas
do organismo e de diferenças ecológicas, isto é, do meio ambiente, e que tais
diferenças não produzem “raças ”. “Raça”, portanto, é uma palavra inventada para
avaliar, julgar e manipular as diferenças biológicas e genéticas.
A sociologia, a antropologia e a história demonstram que as diferenças que a
biologia e a genética apresentam não decorrem somente das diferenças nas
condições ambientais, mas também são produzidas pelas diferentes maneiras
pelas quais os grupos sociais definem as relações de trabalho, de parentesco, as
formas de avaliação, de vestuário, de habitação, etc. Essas diferenças não
formam “raças ” e, portanto, “raça” é uma palavra inventada para avaliar, julgar e
manipular tais diferenças.
A ciência política e econômica demonstra que, no interior de uma mesma
sociedade, formam-se grupos e classes sociais que se apropriam das riquezas e do
poder, colocam (pela força, pelo medo, pela superstição, pela mentira, pela
ilusão) outros grupos e classes sociais sob sua dominação e justificam tal fato
afirmando que tais grupos ou classes são inferiores e que possuem características
físicas e mentais que os fazem ser uma “raça inferior”. “Raça”, portanto, não
existe. É uma palavra inventada para legitimar a exploração e a dominação que
um grupo social e político exerce sobre os outros grupos.
A psicologia demonstra que as capacidades mentais de todos os grupos e classes
sociais de uma cultura são iguais, mas que se manifestam de modos diferenciados
dependendo dos modos de vida, de trabalho, de acesso à escola e à educação
formal, das crenças religiosas, de valores morais e artísticos diferentes, etc. Essas
diferenças não formam “raças ” e, portanto, “raça” é uma palavra inventada para
transformar as diferenças em justificativas para discriminações e exclusões.
A Filosofia, recolhendo fatos, dados, resultados e demonstrações feitos pelas
várias ciências, pode, então, concluir dizendo que:
1. a teoria do racismo é falsa, não é científica e é irracional;
2. a teoria “científica” do racismo é, na verdade, uma prática (e não uma teoria)
econômica, social, política e cultural para justificar a violência contra seres
humanos e, portanto, é inaceitável para as ciências, para a Filosofia e para a
razão. Uma “razão” racista não é razão, mas ignorância, preconceito, violência e
irrazão.


RECAPITULANDO…

No caminho que fizemos até aqui (sobretudo no capítulo 4 da unidade 1 e nos
capítulos 2 e 3 da unidade 2) notamos que a Filosofia e a razão estão na História
e possuem uma história. Notamos também que as respostas filosóficas aos
dilemas criados pelo inatismo e pelo empirismo se transformaram em novas
dificuldades e novos problemas. Vimos, finalmente, que as concepções
contemporâneas da razão são tão radicais que chegamos a indagar se ainda
poderíamos continuar falando em razão.
A essa indagação procuramos responder mostrando que a permanência da razão
se deve ao fato de considerarmos que a realidade (natural, social, cultural,
histórica) tem sentido e que este pode ser conhecido, mesmo quando isso
implique modificar a noção de razão e alargá-la.
Dissemos também que a razão permanece porque a própria razão exige que seu
trabalho de conhecimento seja julgado por ela mesma, e que, para esse
julgamento da racionalidade dos conhecimentos e das ações, a razão oferece dois
critérios principais:
1. o critério lógico da coerência interna de um pensamento ou de uma teoria, isto
é, a avaliação da compatibilidade e da incompatibilidade entre os princípios,
conceitos, definições e procedimentos empregados e as conclusões ou resultados
obtidos;
2. o critério ético-político do papel da razão e do conhecimento para a
compreensão das condições em que vivem os seres humanos e para sua
manutenção, melhoria ou transformação.
Aprendendo com as dificuldades da razão
Vimos também que:
1. mesmo quando os filósofos, para resolver os impasses do inatismo, do
empirismo e do kantismo, afirmam que a razão é histórica, nem por isso
entendem a mesma coisa;
2. dizer que a razão é histórica pode significar: a razão evolui, progride
continuamente no tempo, avança e se torna cada vez melhor; mas também pode
significar: a razão muda radicalmente em cada época, sua história é feita de
rupturas e descontinuidades e não há como, nem por que comparar as diferentes
formas da racionalidade, cada qual tendo sua necessidade própria e seu valor
próprio para o momento em que foi proposta;
3. dizer que a história da razão é descontínua poderia levar a pensar que, afinal, a
palavra razão não indica nada de muito preciso, nada de muito claro e rigoroso e
que, talvez, seja um mito que a cultura ocidental inventou para si mesma. Mas
pode também significar uma outra coisa, muito mais importante: que a razão não
é a estrutura universal do espírito humano e sim um meio precioso de que dispomos para criar, julgar e avaliar conhecimentos, para dar sentido às coisas, às
situações e aos acontecimentos e para transformar nossa existência individual e
coletiva.
Ora, o que fizemos até aqui foi um percurso no qual a razão não cessa de indagar
a si mesma o que ela é, o que ela pode e vale, por que ela existe. As crises da
razão são enfrentadas por ela, na medida em que são criadas por ela mesma em
sua relação com a produção dos conhecimentos e com as condições históricas nas
quais ela se realiza.
É verdade que tomar a razão pelo prisma de suas dificuldades e de seus impasses
pode levar ao risco de cairmos na atitude cética, isto é, na posição dos que não
acreditam que a razão seja capaz de conhecimentos verdadeiros. Isso, no entanto,
só aconteceria se imaginássemos que a razão deveria ser imutável, intemporal e
a-histórica e, portanto, algo que estaria em nós, mas que seria completamente
diferente de nós, já que somos mutáveis, temporais e históricos. O cético é,
afinal, aquele que, no fundo, deseja uma razão absoluta (impossível) e por isso
despreza a razão humana tal como ela existe, pois da forma como ela existe, ele,
o cético, não pode conhecê-la.
Podemos dizer ainda que tomar a razão pelo prisma de suas dificuldades e de
seus impasses, de suas conquistas e perdas é a melhor vacina que a Filosofia
possui contra uma doença intelectual muito perigosa chamada dogmatismo.
Dogmatismo vem da palavra grega dogma, que significa: uma opinião
estabelecida por decreto e ensinada como uma doutrina, sem contestação. Por ser
uma opinião decretada ou uma doutrina inquestionada, um dogma é tomado
como uma verdade que não pode ser contestada nem criticada, como acontece,
por exemplo, na nossa vida cotidiana, quando, diante de uma pergunta ou de uma
dúvida que apresentamos, nos respondem: “É assim porque é assim e porque tem
que ser assim”. O dogmatismo é uma atitude autoritária e submissa. Autoritária,
porque não admite dúvida, contestação e crítica. Submissa, porque se curva às
opiniões estabelecidas.
As crises, as dificuldades e os impasses da razão mostram, assim, o oposto do
dogmatismo. Indicam atitude reflexiva e crítica própria da racionalidade,
destacando a importância fundamental da liberdade de pensamento para a própria
razão e para a Filosofia.

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 2, Capítulo 5. 


 

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