quarta-feira, 15 de abril de 2015

Dogmatismo e estranhamento



Escutemos, porém, por um momento, a indagação de santo Agostinho, em suas
Confissões:
O que é o tempo? Tentemos fornecer uma explicação fácil e breve. O que
há de mais familiar e mais conhecido do que o tempo? Mas, o que é o
tempo? Quando quero explicá-lo, não encontro explicação. Se eu disser
que o tempo é a passagem do passado para o presente e do presente para o
futuro, terei que perguntar: Como pode o tempo passar? Como sei que ele
passa? O que é um tempo passado? Onde ele está? O que é um tempo
futuro? Onde ele está? Se o passado é o que eu, do presente, recordo, e o
futuro é o que eu, do presente, espero, então não seria mais correto dizer
que o tempo é apenas o presente? Mas, quanto dura um presente? Quando
acabo de colocar o ‘r’ no verbo ‘colocar’, este ‘r’ é ainda presente ou já é
passado? A palavra que estou pensando em escrever a seguir, é presente
ou é futuro? O que é o tempo, afinal? E a eternidade?
As coisas são mesmo tais como me aparecem? Estão no espaço? Mas, o que é o
espaço? Se eu disser que o espaço é feito de comprimento, altura e largura, onde
poderei colocar a profundidade, sem a qual não podemos ver, não podemos
enxergar nada? Mas a profundidade, que me permite ver as coisas espaciais, é
justamente aquilo que não vejo e que não posso ver, se eu quiser olhar as coisas.
A profundidade é ou não espacial? Se for espacial, por que não a vejo no espaço?
Se não for espacial, como pode ser a condição para que eu veja as coisas no
espaço?
Acompanhemos agora os versos do poeta Mário de Andrade, escritos no poema
“Lira Paulistana”:
Garoa do meu São Paulo
Um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro,
Passa e torna a ficar branco.
Meu São Paulo da garoa,
- Londres das neblinas frias -
Um pobre vem vindo, é rico!
Só bem perto fica pobre,
Passa e torna a ficar rico.
Esses versos, nos quais a garoa de São Paulo se parece com a neblina de Londres,
isto é, com um véu denso de ar úmido, dizem que não conseguimos ver a
realidade: o negro, de longe, é branco, o pobre, de longe, é rico; só muito de
perto, sem o véu da garoa, o negro é negro e o pobre é pobre. Mas, apesar de vê -
los de perto tais como são, de longe voltam a ser o que não são.
O poeta exprime um dos problemas que mais fascinam a Filosofia: Como a
ilusão é possível? Como podemos ver o que não é? Mas, conseqüentemente,
como a verdade é possível? Como podemos ver o que é, tal como é? Qual é a
“garoa” que se interpõe entre o nosso pensamento e a realidade? Qual é a “garoa”
que se interpõe entre nosso olhar e as coisas?
A atitude dogmática ou natural se rompe quando somos capazes de uma atitude
de estranhamento diante das coisas que nos pareciam familiares. Dois exemplos
podem ilustrar essa capacidade de estranhamento, ambos da escritora Clarice
Lispector em seu livro A descoberta do mundo. O primeiro tem como título
“Mais do que um inseto”.
Custei um pouco a compreender o que estava vendo, de tão inesperado e
sutil que era: estava vendo um inseto pousado, verde-claro, de pernas
altas. Era uma ‘esperança’, o que sempre me disseram que é de bom
augúrio. Depois a esperança começou a andar bem de leve sobre o
colchão. Era verde transparente, com pernas que mantinham seu corpo
plano alto e por assim dizer solto, um plano tão frágil quanto as próprias
pernas que eram feitas apenas da cor da casca. Dentro do fiapo das pernas
não havia nada dentro: o lado de dentro de uma superfície tão rasa já é a
própria superfície. Parecia um raso desenho que tivesse saído do papel,
verde e andasse… E andava com uma determinação de quem copiasse um
traço que era invisível para mim… Mas onde estariam nele as glândulas
de seu destino e as adrenalinas de seu seco verde interior? Pois era um ser
oco, um enxerto de gravetos, simples atração eletiva de linhas verdes.
O outro se intitula “Atualidade do ovo e da galinha” e nele podemos ler o
seguinte trecho:
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode
estar vendo um ovo apenas: ver o ovo é sempre hoje; mal vejo o ovo e já
se torna ter visto um ovo, o mesmo, há três milênios. No próprio instante
de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. Só vê o ovo quem já o tiver
visto… Ver realmente o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há
sons supersônicos que o ouvido já não ouve. Ninguém é capaz de ver o
ovo… O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi
ele quem pousou, foi uma superfície que veio ficar embaixo do ovo… O
ovo é uma exteriorização: ter uma casca é dar-se… O ovo expõe tudo.
À primeira vista, que há de mais banal ou familiar do que um inseto ou um ovo?
No entanto, Clarice Lispector nos faz sentir admiração e estranhamento, como se
jamais tivéssemos visto um inseto ou um ovo. Nas duas descrições maravilhadas,
um ponto é comum: o inseto e o ovo têm a peculiaridade de serem superfícies nas
quais não conseguimos distinguir ou separar o fora e o dentro, o exterior e o
interior; a ‘esperança’ verde é como um traçado – letra, desenho – sobre a
superfície do papel; o ovo é uma casca que expõe tudo.
No entanto, nesses dois seres sem profundidade, há um abismo misterioso: todo
ovo é igual a todo ovo e por isso não temos como ver “um” ovo, embora ele
esteja diante de nossos olhos; e o inseto ‘esperança’ é um oco, um vazio colorido
(como um vazio pode ter cor?) ou uma cor sem corpo (como uma cor pode existir
sem um corpo colorido?).

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 3, Capítulo 2. (pág. 117 a 119)

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