quarta-feira, 15 de abril de 2015

O sentido das palavras



A mesma estranheza pode ser encontrada num poema de Carlos Drummond, mas
agora relativa à linguagem. Usamos todos os dias as palavras como instrumentos
dóceis e disponíveis, como se sempre estivessem estado prontas para nós, com
seu sentido claro e útil. O poeta, porém, aconselha:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Se as palavras tivessem sempre um sentido óbvio e único, não haveria literatura,
não haveria mal-entendido e controvérsia. Se as palavras tivessem sempre o
mesmo sentido e se indicassem diretamente as coisas nomeadas, como seria
possível a mentira? É por isso que o poeta Fernando Pessoa, em versos famosos,
escreveu:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor,
A dor que deveras sente.
O poeta é um “finge-dor” e seu fingimento – isto é, sua criação artística – é tão
profundo e tão constitutivo de seu ser de poeta, que ele finge – isto é, transforma
em poema, em obra de arte – a dor que deveras ou de verdade sente. A palavra
tem esse poder misterioso de transformar o que não existe em realidade (o poeta
finge) e de dar a aparência de irrealidade ao que realmente existe (o poeta finge a
dor que realmente sente).
Na tragédia Otelo, de Shakespeare, o mouro Otelo, apaixonado perdidamente por
sua jovem esposa, Desdêmona, acaba por assassiná-la porque foi convencido por
Iago de que ela o traía. Iago, invejoso dos cargos que Otelo daria a um outro
membro de sua corte, inventou a traição de Desdêmona, mentiu para Otelo e este,
tomando a mentira pela verdade, destruiu a pessoa amada, que morreu afirmando
sua inocência. Para construir a mentira, Iago despertou em Otelo o ciúme,
caluniando Desdêmona. Usou vários estratagemas, mas sobretudo usou a
linguagem, isto é, palavras falsas que envenenaram o espírito de Otelo.
Como é possível que as palavras ou que a linguagem tenham o poder para tornar
o verdadeiro, falso, e fazer do falso, verdadeiro? Como seria uma sociedade na
qual a mentira fosse a regra e, portanto, na qual não conseguíssemos nenhuma
informação, por menor que fosse, que tivesse alguma veracidade? Como
faríamos para sobreviver, se tudo o que nos fosse dito fosse mentira? Perguntas e
respostas seriam inúteis, a desconfiança e a decepção seriam as únicas formas de
relação entre as pessoas e tal sociedade seria a imagem do Inferno.
Essa sociedade infernal é criada pelo escritor George Orwell, no romance 1984.
Orwell descreve uma sociedade totalitária que controla todos os gestos, atos,
pensamentos e palavras de seus membros. Estes, todos os dias, entram num
cubículo onde uma teletela exibe o rosto do grande chefe, o Grande Irmão, que,
pela mentira e pelo medo, domina o espírito da população, falando diariamente
com cada um.
Nessa sociedade, é instituído o Ministério da Verdade, no qual, todos os dias, os
fatos reais são modificados em narrativas ou relatos falsos, são omitidos, são
apagados da História e da memória, como se nunca tivessem existido. O
Ministério da Verdade cria a mentira como instituição social. O poder cria a
Novi-Língua, isto é, inventa palavras e destrói outras; as inventadas são as que
estão a serviço da mentira institucionalizada e as destruídas são as que poderiam
fazer aparecer a mentira. A negação da verdade é, assim, usada para manter uma
sociedade inteira enganada e submissa.
Quando vemos o modo como os meios de comunicação funcionam, podemos
perguntar se 1984 é uma simples ficção ou se realmente existe, sem que o
saibamos.
Como é possível que a linguagem tenha tamanho poder mistificador? E, ao
mesmo tempo, como é possível que, em todas as culturas, na relação entre os
homens e a divindade, entre o profano e o sagrado, o papel fundamental de
revelação da verdade seja sempre dado à linguagem, à palavra sagrada e
verdadeira que os deuses dizem aos homens? Como uma mesma coisa – a
palavra, o discurso – pode ser origem, ao mesmo tempo, da verdade e da
falsidade? Como a linguagem pode mostrar e esconder?
Como essa duplicidade misteriosa da linguagem pode servir para manter o
dogmatismo? Mas também, como pode despertar o desejo de verdade?

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 3, Capítulo 2. (pág. 119 a 121)

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