terça-feira, 14 de abril de 2015

Dificuldades para a busca da verdade



Em nossa sociedade, é muito difícil despertar nas pessoas o desejo de buscar a
verdade. Pode parecer paradoxal que assim seja, pois parecemos viver numa
sociedade que acredita nas ciências, que luta por escolas, que recebe durante 24
horas diárias informações vindas de jornais, rádios e televisões, que possui
editoras, livrarias, bibliotecas, museus, salas de cinema e de teatro, vídeos,
fotografias e computadores.
Ora, é justamente essa enorme quantidade de veículos e formas de informação
que acaba tornando tão difícil a busca da verdade, pois todo mundo acredita que
está recebendo, de modos variados e diferentes, informações científicas,
filosóficas, políticas, artísticas e que tais informações são verdadeiras, sobretudo
porque tal quantidade informativa ultrapassa a experiência vivida pelas pessoas,
que, por isso, não têm meios para avaliar o que recebem.
Bastaria, no entanto, que uma mesma pessoa, durante uma semana, lesse de
manhã quatro jornais diferentes e ouvisse três noticiários de rádio diferentes; à
tarde, freqüentasse duas escolas diferentes, onde os mesmos cursos estariam
sendo ministrados; e, à noite, visse os noticiários de quatro canais diferentes de
televisão, para que, comparando todas as informações recebidas, descobrisse que
elas “não batem” umas com as outras, que há vários “mundos” e várias
“sociedades” diferentes, dependendo da fonte de informação.
Uma experiência como essa criaria perplexidade, dúvida e incerteza. Mas as
pessoas não fazem ou não podem fazer tal experiência e por isso não percebem
que, em lugar de receber informações, estão sendo desinformadas. E, sobretudo,
como há outras pessoas (o jornalista, o radialista, o professor, o médico, o
policial, o repórter) dizendo a elas o que devem saber, o que podem saber, o que
podem e devem fazer ou sentir, confiando na palavra desses “emissores de
mensagens”, as pessoas se sentem seguras e confiantes, e não há incerteza porque
há ignorância.
Uma outra dificuldade para fazer surgir o desejo da busca da verdade, em nossa
sociedade, vem da propaganda.
A propaganda trata todas as pessoas – crianças, jovens, adultos, idosos – como
crianças extremamente ingênuas e crédulas. O mundo é sempre um mundo “de
faz-de-conta”: nele a margarina fresca faz a família bonita, alegre, unida e feliz; o
automóvel faz o homem confiante, inteligente, belo, sedutor, bem-sucedido nos
negócios, cheio de namoradas lindas; o desodorante faz a moça bonita, atraente,
bem empregada, bem vestida, com um belo apartamento e lindos namorados; o
cigarro leva as pessoas para belíssimas paisagens exóticas, cheias de aventura e
de negócios coroados de sucesso que terminam com lindos jantares à luz de
velas.
A propaganda nunca vende um produto dizendo o que ele é e para que serve. Ela
vende o produto rodeando-o de magias, belezas, dando-lhe qualidades que são de
outras coisas (a criança saudável, o jovem bonito, o adulto inteligente, o idoso
feliz, a casa agradável, etc.), produzindo um eterno “faz-de-conta”.
Uma outra dificuldade para o desejo da busca da verdade vem da atitude dos
políticos nos quais as pessoas confiam, ouvindo seus programas, suas propostas,
seus projetos enfim, dando-lhes o voto e vendo-se, depois, ludibriadas, não só
porque não são cumpridas as promessas, mas também porque há corrupção, mau
uso do dinheiro público, crescimento das desigualdades e das injustiças, da
miséria e da violência.
Em vista disso, a tendência das pessoas é julgar que é impossível a verdade na
política, passando a desconfiar do valor e da necessidade da democracia e
aceitando “vender” seu voto por alguma vantagem imediata e pessoal, ou caem
na descrença e no ceticismo.
No entanto, essas dificuldades podem ter o efeito oposto, isto é, suscitar em
muitas pessoas dúvidas, incertezas, desconfianças e desilusões que as façam
desejar conhecer a realidade, a sociedade, a ciência, as artes, a política. Muitos
começam a não aceitar o que lhes é dito. Muitos começam a não acreditar no que
lhes é mostrado. E, como Sócrates em Atenas, começam a fazer perguntas, a
indagar sobre fatos e pessoas, coisas e situações, a exigir explicações, a exigir
liberdade de pensamento e de conhecimento.
Para essas pessoas, surge o desejo e a necessidade da busca da verdade. Essa
busca nasce não só da dúvida e da incerteza, nasce também da ação deliberada
contra os preconceitos, contra as idéias e as opiniões estabelecidas, contra
crenças que paralisam a capacidade de pensar e de agir livremente.
Podemos, dessa maneira, distinguir dois tipos de busca da verdade. O primeiro é
o que nasce da decepção, da incerteza e da insegurança e, por si mesmo, exige
que saiamos de tal situação readquirindo certezas. O segundo é o que nasce da
deliberação ou decisão de não aceitar as certezas e crenças estabelecidas, de ir além delas e de encontrar explicações, interpretações e significados para a
realidade que nos cerca. Esse segundo tipo é a busca da verdade na atitude
filosófica.
Podemos oferecer dois exemplos célebres dessa busca filosófica. Já falamos do
primeiro: Sócrates andando pelas ruas e praças de Atenas indagando aos
atenienses o que eram as coisas e idéias em que acreditavam. O segundo exemplo
é o do filósofo Descartes.
Descartes começa sua obra filosófica fazendo um balanço de tudo o que sabia: o
que lhe fora ensinado pelos preceptores e professores, pelos livros, pelas viagens,
pelo convívio com outras pessoas. Ao final, conclui que tudo quanto aprendera,
tudo quanto sabia e tudo quanto conhecera pela experiência era duvidoso e
incerto. Decide, então, não aceitar nenhum desses conhecimentos, a menos que
pudesse provar racionalmente que eram certos e dignos de confiança. Para isso,
submete todos os conhecimentos existentes em suas época e os seus próprios a
um exame crítico conhecido como dúvida metódica, declarando que só aceitará
um conhecimento, uma idéia, um fato ou uma opinião se, passados pelo crivo da
dúvida, revelarem-se indubitáveis para o pensamento puro. Ele os submete à
análise, à dedução, à indução, ao raciocínio e conclui que, até o momento, há
uma única verdade indubitável que poderá ser aceita e que deverá ser o ponto de
partida para a reconstrução do edifício do saber.
Essa única verdade é: “Penso, logo existo”, pois, se eu duvidar de que estou
pensando, ainda estou pensando, visto que duvidar é uma maneira de pensar. A
consciência do pensamento aparece, assim, como a primeira verdade indubitável
que será o alicerce para todos os conhecimentos futuros.
  
Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 3, Capítulo 1. (pág. 113 a 115)

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