quarta-feira, 15 de abril de 2015

Verdades reveladas e verdades alcançadas



A atitude dogmática é conservadora, isto é, sente receio das novidades, do
inesperado, do desconhecido e de tudo o que possa desequilibrar as crenças e
opiniões já constituídas. Esse conservadorismo se transforma em preconceito,
isto é, em idéias preconcebidas que impedem até mesmo o contato com tudo
quanto possa pôr em perigo o já sabido, o já dito e o já feito.
O conservadorismo pode aumentar ainda mais quando o dogmatismo estiver
convencido de que várias de suas opiniões e crenças vieram de uma fonte
sagrada, de uma revelação divina incontestável e incontestada, de tal modo que
situações que tornem problemáticas tais crenças são afastadas como inaceitáveis
e perigosas; aqueles que ousam enfrentar essas crenças e opiniões são tidos como
criminosos, blasfemadores e heréticos.
No romance de Umberto Eco, O nome da rosa, uma série de assassinatos
misteriosos acontecem e todos os mortos trazem um mesmo sinal, a língua
enegrecida e dois dedos da mão direita – o polegar e o indicador – também
enegrecidos. O monge Guilherme de Baskerville descobre que todos os
assassinados eram frades encarregados de copiar e ilustrar manuscritos de uma
biblioteca; todos eles haviam manuseado um mesmo livro no qual havia algo que
funcionava como veneno (ao molhar os dedos com saliva para virar as páginas do
livro, os copistas eram envenenados).
Guilherme descobre que o livro era uma obra perdida de Aristóteles sobre a
comédia e a importância do riso para a vida humana. Descobre também que um
dos monges, Jorge de Burgos, guardião da biblioteca, julgara que o riso é
contrário à vontade de Deus, um pecado que merece a morte, pois viemos ao
mundo para sofrer a culpa original de Adão. Por isso, assassinou por
envenenamento os copistas que ousaram ler o livro e, ao final, queima a
biblioteca para que o livro seja destruído.
Nesse romance, duas idéias acerca da verdade se enfrentam: a verdade humana,
que estaria contida no livro do filósofo Aristóteles, e a verdade divina, que o
bibliotecário julga estar na proibição do riso e da alegria para os humanos
pecadores, que vieram à Terra para o sofrimento. Em nome dessa segunda
verdade, Jorge de Burgos matou outros seres humanos e queimou livros escritos
por seres humanos, pois, para ele, uma verdade revelada por Deus é a única
verdade e tudo quanto querem e pensam os humanos, se for contrário à verdade
divina, é erro e falsidade, crime e blasfêmia.
Esse conflito entre verdades reveladas e verdades alcançadas pelos humanos
através do exercício da inteligência e da razão tem sido também uma questão que
preocupa a Filosofia, desde o surgimento do Cristianismo. Podemos conhecer as
verdades divinas? Se não pudermos conhecê-las, seremos culpados? Mas, como
seríamos culpados por não conhecer aquilo que nosso intelecto, por ser pequeno
e menor do que o de Deus, não teria forças para alcançar? 

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 3, Capítulo 2. (pág. 121 a 122)

Nenhum comentário:

Postar um comentário