As evidências do
cotidiano
Em nossa vida cotidiana,
afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou
recusamos coisas, pessoas,
situações. Fazemos perguntas como “que horas são?”,
ou “que dia é hoje?”. Dizemos
frases como “ele está sonhando”, ou “ela ficou
maluca”. Fazemos afirmações como “onde
há fumaça, há fogo ”, ou “não saia na
chuva para não se resfriar”.
Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo,
“esta casa é mais bonita do que a
outra” e “Maria está mais jovem do que Glorinha”.
Numa disputa, quando os ânimos
estão exaltados, um dos contendores pode
gritar ao outro: “Mentiroso! Eu
estava lá e não foi isso o que aconteceu”, e
alguém, querendo acalmar a briga,
pode dizer: “Vamos ser objetivos, cada um
diga o que viu e vamos nos
entender”.
Também é comum ouvirmos os pais e
amigos dizerem que somos muito
subjetivos quando o assunto é o
namorado ou a namorada. Freqüentemente,
quando aprovamos uma pessoa, o
que ela diz, como ela age, dizemos que essa
pessoa “é legal ”.
Vejamos um pouco mais de perto o
que dizemos em nosso cotidiano.
Quando pergunto “que horas são?”
ou “que dia é hoje?”, minha expectativa é a
de que alguém, tendo um relógio
ou um calendário, me dê a resposta exata. Em
que acredito quando faço a
pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo
existe, que ele passa, pode ser
medido em horas e dias, que o que já passou é
diferente de agora e o que virá
também há de ser diferente deste momento, que o
passado pode ser lembrado ou
esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim,
uma simples pergunta contém,
silenciosamente, várias crenças não questionadas
por nós.
Quando digo “ele está sonhando”,
referindo-me a alguém que diz ou pensa
alguma coisa que julgo impossível
ou improvável, tenho igualmente muitas
crenças silenciosas: acredito que
sonhar é diferente de estar acordado, que, no
sonho, o impossível e o
improvável se apresentam como possível e provável, e
também que o sonho se relaciona
com o irreal, enquanto a vigília se relaciona
com o que existe realmente.
Acredito, portanto, que a
realidade existe fora de mim, posso percebê-la e
conhecê-la tal como é, sei
diferenciar realidade de ilusão.
A frase “ela ficou maluca” contém
essas mesmas crenças e mais uma: a de que
sabemos diferenciar razão de
loucura e maluca é a pessoa que inventa uma
realidade existente só para ela.
Assim, ao acreditar que sei distinguir razão de
loucura, acredito também que a
razão se refere a uma realidade que é a mesma
para todos, ainda que não
gostemos das mesmas coisas.
Quando alguém diz “onde há fumaça,
há fogo” ou “não saia na chuva para não se
resfriar”, afirma silenciosamente
muitas crenças: acredita que existem relações de
causa e efeito entre as coisas,
que onde houver uma coisa certamente houve uma
causa para ela, ou que essa coisa
é causa de alguma outra (o fogo causa a fumaça
como efeito, a chuva causa o
resfriado como efeito). Acreditamos, assim, que a
realidade é feita de
causalidades, que as coisas, os fatos, as situações se
encadeiam em relações causais que
podemos conhecer e, até mesmo, controlar
para o uso de nossa vida.
Quando avaliamos que uma casa é
mais bonita do que a outra, ou que Maria está
mais jovem do que Glorinha,
acreditamos que as coisas, as pessoas, as situações,
os fatos podem ser comparados e
avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio,
bom, ruim) ou pela quantidade
(mais, menos, maior, menor). Julgamos, assim,
que a qualidade e a quantidade
existem, que podemos conhecê-las e usá-las em
nossa vida.
Se, por exemplo, dissermos que “o
sol é maior do que o vemos”, também
estamos acreditando que nossa
percepção alcança as coisas de modos diferentes,
ora tais como são em si mesmas,
ora tais como nos aparecem, dependendo da distância, de nossas condições de
visibilidade ou da localização e do movimento
dos objetos.
Acreditamos, portanto, que o
espaço existe, possui qualidades (perto, longe, alto,
baixo) e quantidades, podendo ser
medido (comprimento, largura, altura). No
exemplo do sol, também se nota
que acreditamos que nossa visão pode ver as
coisas diferentemente do que elas
são, mas nem por isso diremos que estamos
sonhando ou que ficamos malucos.
Na briga, quando alguém chama o
outro de mentiroso porque não estaria dizendo
os fatos exatamente como
aconteceram, está presente a nossa crença de que há
diferença entre verdade e
mentira. A primeira diz as coisas tais como são,
enquanto a segunda faz exatamente
o contrário, distorcendo a realidade.
No entanto, consideramos a
mentira diferente do sonho, da loucura e do erro
porque o sonhador, o louco e o
que erra se iludem involuntariamente, enquanto o
mentiroso decide voluntariamente
deformar a realidade e os fatos.
Com isso, acreditamos que o erro
e a mentira são falsidades, mas diferentes
porque somente na mentira há a
decisão de falsear.
Ao diferenciarmos erro de
mentira, considerando o primeiro uma ilusão ou um
engano involuntários e a segunda
uma decisão voluntária, manifestamos
silenciosamente a crença de que
somos seres dotados de vontade e que dela
depende dizer a verdade ou a
mentira.
Ao mesmo tempo, porém, nem sempre
avaliamos a mentira como alguma coisa
ruim: não gostamos tanto de ler
romances, ver novelas, assistir a filmes? E não
são mentira? É que também
acreditamos que quando alguém nos avisa que está
mentindo, a mentira é aceitável,
não seria uma mentira “no duro”, “pra valer”.
Quando distinguimos entre verdade
e mentira e distinguimos mentiras
inaceitáveis de mentiras
aceitáveis, não estamos apenas nos referindo ao
conhecimento ou desconhecimento
da realidade, mas também ao caráter da
pessoa, à sua moral. Acreditamos,
portanto, que as pessoas, porque possuem
vontade, podem ser morais ou
imorais, pois cremos que a vontade é livre para o
bem ou para o mal.
Na briga, quando uma terceira
pessoa pede às outras duas para que sejam
“objetivas” ou quando falamos dos
namorados como sendo “muito subjetivos”,
também estamos cheios de crenças
silenciosas. Acreditamos que quando alguém
quer defender muito intensamente
um ponto de vista, uma preferência, uma
opinião, até brigando por isso,
ou quando sente um grande afeto por outra pessoa,
esse alguém “perde” a
objetividade, ficando “muito subjetivo”.
Com isso, acreditamos que a
objetividade é uma atitude imparcial que alcança as
coisas tais como são
verdadeiramente, enquanto a subjetividade é uma atitude
parcial, pessoal, ditada por
sentimentos variados (amor, ódio, medo, desejo).
Assim, não só acreditamos que a
objetividade e a subjetividade existem, como ainda acreditamos que são
diferentes e que a primeira não deforma a realidade,
enquanto a segunda, voluntária ou
involuntariamente, a deforma.
Ao dizermos que alguém “é legal ”
porque tem os mesmos gostos, as mesmas
idéias, respeita ou despreza as
mesmas coisas que nós e tem atitudes, hábitos e
costumes muito parecidos com os
nossos, estamos, silenciosamente, acreditando
que a vida com as outras pessoas
- família, amigos, escola, trabalho, sociedade,
política - nos faz semelhantes ou
diferentes em decorrência de normas e valores
morais, políticos, religiosos e
artísticos, regras de conduta, finalidades de vida.
Achando óbvio que todos os seres
humanos seguem regras e normas de conduta,
possuem valores morais,
religiosos, políticos, artísticos, vivem na companhia de
seus semelhantes e procuram
distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e
com os quais entram em conflito,
acreditamos que somos seres sociais, morais e
racionais, pois regras, normas,
valores, finalidades só podem ser estabelecidos
por seres conscientes e dotados
de raciocínio.
Como se pode notar, nossa vida
cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da
aceitação tácita de evidências
que nunca questionamos porque nos parecem
naturais, óbvias. Cremos no
espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na
quantidade, na verdade, na
diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre
verdade e mentira; cremos também
na objetividade e na diferença entre ela e a
subjetividade, na existência da
vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral,
da sociedade.
Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, introdução.
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