Se os princípios e as idéias da razão são inatos e por isso universais e
necessários, como explicar que
possam mudar?
Por exemplo, Platão afirmava que
a idéia de justiça era inata, vinha da
contemplação intelectual do justo
em si ou do conhecimento racional das coisas
justas em si. Sendo inata, era
universal e necessária.
Sem dúvida, dizia o filósofo
grego, os seres humanos variam muito nas suas
opiniões sobre o justo e a
justiça, pois essas opiniões se formam por experiência
e esta varia de pessoa para
pessoa, de época para época, de lugar para lugar. Por
isso mesmo, são simples opiniões.
Uma idéia verdadeira, ao
contrário, por ser verdadeira, é inata, universal e
necessária, não sofrendo as variações
das opiniões, que, além de serem variáveis,
são, no mais das vezes, falsas,
pois nossa experiência tende a ser enganosa ou
enganada.
Qual era a idéia platônica da
justiça? Era uma idéia moral ou uma idéia política.
Moralmente, uma pessoa é justa (pratica
a idéia universal da justiça) quando faz
com que o intelecto ou a razão
domine e controle inteira e completamente seus
impulsos passionais, seus
sentimentos e suas emoções irracionais. Por quê?
Porque o intelecto ou a razão é a
parte melhor e superior de nossa alma ou
espírito e deve dominar a parte
inferior e pior, ligada aos desejos irracionais do
nosso corpo.
Politicamente, uma sociedade é
justa (isto é, pratica a idéia inata e universal de
justiça) quando nela as classes
sociais se relacionam como na moral. Em outras
palavras, quando as classes
inferiores forem dominadas e controladas pelas
classes superiores.
A sociedade justa cria uma
hierarquia ou uma escala de classes sociais e de
poderes, onde a classe econômica,
mais inferior, deve ser dominada e controlada
pela classe militar, para que as
riquezas não provoquem desigualdades, egoísmos,
guerras, violências; a classe
militar, por sua vez, deve ser dominada e controlada
pela classe política para impedir
que os militares queiram usar a força e a
violência contra a sociedade e
fazer guerras absurdas. Enfim, a classe política
deve ser dominada e controlada
pelos sábios (a razão), que não deixarão que os
políticos abusem do poder e
prejudiquem toda a sociedade.
Justiça, portanto, é o domínio da
inteligência sobre os instintos, interesses e
paixões, tanto no indivíduo quanto na sociedade.
Ora, o que acontece com a justiça
moral platônica, isto é, com a idéia de um
poder total da razão sobre as
paixões e os sentimentos, os desejos e os impulsos,
com o surgimento da psicanálise?
Freud, seu criador, mostrou que não temos
esse poder, que nossa
consciência, nossa vontade e nossa razão podem menos
que o nosso inconsciente, isto é,
do que o desejo. Como uma idéia inata, afinal,
perdeu a verdade?
O que acontece com a justiça
política platônica quando alguns filósofos que
estudaram a formação das
sociedades e da política mostraram a igualdade de
todos os cidadãos e afirmaram que
nenhuma classe tem o direito de dominar e
controlar outras, e que tal domínio
e controle é, exatamente, a injustiça? Como
uma idéia inata, afinal, perdeu a
verdade?
Tomemos, agora, um outro exemplo,
vindo da filosofia de Descartes.
Descartes considera que a
realidade natural é regida por leis universais e
necessárias do movimento, isto é,
que a natureza é uma realidade mecânica.
Considera também que as leis
mecânicas ou leis do movimento elaboradas por
sua filosofia ou por sua física
são idéias racionais deduzidas de idéias inatas
simples e verdadeiras.
Ora, quando comparamos a física
de Descartes com a de Galileu, elaborada na
mesma época, verificamos que a
física galileana é oposta à cartesiana e é a que
será provada e demonstrada
verdadeira, a de Descartes sendo falsa. Como
poderia isso acontecer, se as
idéias da física cartesiana eram idéias inatas?
Os exemplos que propusemos
indicam onde estão os dois grandes problemas do
inatismo:
1. a própria razão
pode mudar o conteúdo de idéias que eram consideradas
universais e verdadeiras (é o
caso da idéia platônica de justiça);
2. a própria razão
pode provar que idéias racionais também podem ser falsas (é o
caso da física cartesiana).
Se as idéias são racionais e
verdadeiras, é porque correspondem à realidade. Ora,
a realidade permanece a mesma e,
no entanto, as idéias que a explicavam
perderam a validade. Ou seja, o
inatismo se depara com o problema da mudança
das idéias, feita pela própria
razão, e com o problema da falsidade das idéias,
demonstrada pela própria razão.
Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 2, Capítulo 3.
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