sábado, 6 de dezembro de 2014

Condições históricas para o surgimento da Filosofia

Resolvido esse problema, temos ainda um último a solucionar: O que tornou
possível o surgimento da Filosofia na Grécia no final do século VII e no início do
século VI antes de Cristo? Quais as condições materiais, isto é, econômicas,
sociais, políticas e históricas que permitiram o surgimento da Filosofia?
Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da
Filosofia na Grécia:
as viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que
os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados
por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam
habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres
fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do
mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação
que o mito já não podia oferecer;
a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as
estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando,
com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como
algo natural e não como um poder divino incompreensível;
a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza
através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança,
mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de
generalização;
o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato,
dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o
prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem
os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes
ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o
velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas
pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo
às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a
Filosofia poderia surgir;
a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda,
revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que
a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas - como, por
exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que
não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o
que dela se pensa e se transcreve;
a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o
nascimento da Filosofia:
1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que
decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações
internas. O aspecto legislado e regulado da cidade - da polis - servirá de modelo
para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como
um mundo racional.
2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra
ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poeta-vidente,
que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das
Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação
sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles
deveriam obedecer.
Agora, com a polis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada
cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a
tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político
como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação
humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões
para fazer ou não fazer alguma coisa.
A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a
decisão racional , valorizou o pensamento racional e criou condições para que
surgisse o discurso ou a palavra filosófica.
3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser
formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que
procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e
discutidos. A ideia de um pensamento que todos podem compreender e discutir,
que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia.

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Capítulo 2.

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