quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A razão: inata ou adquirida?


Inatismo ou empirismo?
De onde vieram os princípios racionais (identidade, não-contradição, terceiro excluído
e razão suficiente)? De onde veio a capacidade para a intuição (razão
intuitiva) e para o raciocínio (razão discursiva)? Nascemos com eles? Ou nos
seriam dados pela educação e pelo costume? Seriam algo próprio dos seres
humanos, constituindo a natureza deles, ou seriam adquiridos através da
experiência?
Durante séculos, a Filosofia ofereceu duas respostas a essas perguntas. A
primeira ficou conhecida como inatismo e a segunda, como empirismo.
O inatismo afirma que nascemos trazendo em nossa inteligência não só os
princípios racionais, mas também algumas idéias verdadeiras, que, por isso, são
idéias inatas. O empirismo, ao contrário, afirma que a razão, com seus princípios,
seus procedimentos e suas idéias, é adquirida por nós através da experiência. Em
grego, experiência se diz: empeiria – donde, empirismo, conhecimento empírico,
isto é, conhecimento adquirido por meio da experiência.
O inatismo
Vamos falar do inatismo tomando dois filósofos como exemplo: o filósofo grego
Platão (século IV a.C.) e o filósofo francês Descartes (século XVII).
Inatismo platônico
Platão defende a tese do inatismo da razão ou das idéias verdadeiras em várias de
suas obras, mas as passagens mais conhecidas se encontram nos diálogos Mênon
e A República.
No Mênon, Sócrates dialoga com um jovem escravo analfabeto. Fazendo-lhe
perguntas certas na hora certa, o filósofo consegue que o jovem escravo
demonstre sozinho um difícil teorema de geometria (o teorema de Pitágoras). As
verdades matemáticas vão surgindo no espírito do escravo à medida que Sócrates
vai-lhe fazendo perguntas e vai raciocinando com ele.
Como isso seria possível, indaga Platão, se o escravo não houvesse nascido com
a razão e com os princípios da racionalidade? Como dizer que conseguiu
demonstrar o teorema por um aprendizado vindo da experiência, se ele jamais
ouvira falar de geometria?
Em A República, Platão desenvolve uma teoria que já fora esboçada no Mênon: a
teoria da reminiscência. Nascemos com a razão e as idéias verdadeiras, e a
Filosofia nada mais faz do que nos relembrar essas idéias.
Platão é um grande escritor e usa em seus escritos um procedimento literário que
o auxilia a expor as teorias muito difíceis. Assim, para explicar a teoria da
reminiscência, narra o mito de Er.
O pastor Er, da região da Panfília, morreu e foi levado para o Reino dos Mortos.
Ali chegando, encontra as almas dos heróis gregos, de governantes, de artistas,
de seus antepassados e amigos. Ali, as almas contemplam a verdade e possuem o
conhecimento verdadeiro.
Er fica sabendo que todas as almas renascem em outras vidas para se purificarem
de seus erros passados até que não precisem mais voltar à Terra, permanecendo
na eternidade. Antes de voltar ao nosso mundo, as almas podem escolher a nova
vida que terão. Algumas escolhem a vida de rei, outras de guerreiro, outras de
comerciante rico, outras de artista, de sábio.
No caminho de retorno à Terra, as almas atravessam uma grande planície por
onde corre um rio, o Lethé (que, em grego, quer dizer esquecimento), e bebem de
suas águas. As que bebem muito esquecem toda a verdade que contemplaram; as
bebem pouco quase não se esquecem do que conheceram.
As que escolheram vidas de rei, de guerreiro ou de comerciante rico são as que
mais bebem das águas do esquecimento; as que escolheram a sabedoria são as
que menos bebem. Assim, as primeiras dificilmente (talvez nunca) se lembrarão,
na nova vida, da verdade que conheceram, enquanto as outras serão capazes de
lembrar e ter sabedoria, usando a razão.
Conhecer, diz Platão, é recordar a verdade que já existe em nós; é despertar a
razão para que ela se exerça por si mesma. Por isso, Sócrates fazia perguntas,
pois, através delas, as pessoas poderiam lembrar-se da verdade e do uso da razão.
Se não nascêssemos com a razão e com a verdade, indaga Platão, como
saberíamos que temos uma idéia verdadeira ao encontrá-la? Como poderíamos
distinguir o verdadeiro do falso, se não nascêssemos conhecendo essa diferença? 

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 2, Capítulo 3.

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