domingo, 4 de janeiro de 2015

Temas, disciplinas e campos filosóficos



A Filosofia existe há 25 séculos. Durante uma história tão longa e de tantos
períodos diferentes, surgiram temas, disciplinas e campos de investigação
filosóficos enquanto outros desapareceram. Desapareceu também a idéia de
Aristóteles de que a Filosofia era a totalidade dos conhecimentos teóricos e
práticos da humanidade.
Também desapareceu uma imagem, que durou muitos séculos, na qual a
Filosofia era representada como uma grande árvore frondosa, cujas raízes eram a
metafísica e a teologia, cujo tronco era a lógica, cujos ramos principais eram a
filosofia da Natureza, a ética e a política e cujos galhos extremos eram as
técnicas, as artes e as invenções. A Filosofia, vista como uma totalidade orgânica
ou viva, era chamada de “rainha das ciências ”. Isso desapareceu.
Pouco a pouco, as várias ciências particulares foram definindo seus objetivos,
seus métodos e seus resultados próprios, e se desligaram da grande árvore. Cada
ciência, ao se desligar, levou consigo os conhecimentos práticos ou aplicados de
seu campo de investigação, isto é, as artes e as técnicas a ele ligadas. As últimas ciências a aparecer e a se desligar da árvore da Filosofia foram as ciências
humanas (psicologia, sociologia, antropologia, história, lingüística, geografia,
etc.). Outros campos de conhecimento e de ação abriram-se para a Filosofia, mas
a idéia de uma totalidade de saberes que conteria em si todos os conhecimentos
nunca mais reapareceu.
No século XX, a Filosofia foi submetida a uma grande limitação quanto à esfera
de seus conhecimentos. Isso pode ser atribuído a dois motivos principais:
1. Desde o final do século XVIII, com o filósofo alemão Immanuel Kant, passouse
a considerar que a Filosofia, durante todos os séculos anteriores, tivera uma
pretensão irrealizável. Que pretensão fora essa? A de que nossa razão pode
conhecer as coisas tais como são em si mesmas. Esse conhecimento da realidade
em si, dos primeiros princípios e das primeiras causas de todas as coisas chamase
metafísica.
Kant negou que a razão humana tivesse tal poder de conhecimento e afirmou que
só conhecemos as coisas tais como são organizadas pela estrutura interna e
universal de nossa razão, mas nunca saberemos se tal organização corresponde
ou não à organização em si da própria realidade. Deixando de ser metafísica, a
Filosofia se tornou o conhecimento das condições de possibilidade do
conhecimento verdadeiro enquanto conhecimento possível para os seres humanos
racionais.
A Filosofia tornou-se uma teoria do conhecimento, ou uma teoria sobre a
capacidade e a possibilidade humana de conhecer, e uma ética, ou estudo das
condições de possibilidade da ação moral enquanto realizada por liberdade e por
dever. Com isso, a Filosofia deixava de ser conhecimento do mundo em si e
tornava-se apenas conhecimento do homem enquanto ser racional e moral.
2. Desde meados do século XIX, como conseqüência da filosofia de Augusto
Comte - chamada de positivismo -, foi feita uma separação entre Filosofia e
ciências positivas (matemática, física, química, biologia, astronomia, sociologia).
As ciências, dizia Comte, estudam a realidade natural, social, psicológica e moral
e são propriamente o conhecimento. Para ele, a Filosofia seria apenas uma
reflexão sobre o significado do trabalho científico, isto é, uma análise e uma
interpretação dos procedimentos ou das metodologias usadas pelas ciências e
uma avaliação dos resultados científicos. A Filosofia tornou-se, assim, uma teoria
das ciências ou epistemologia (episteme, em grego, quer dizer ciência).
A Filosofia reduziu-se, portanto, à teoria do conhecimento, à ética e à
epistemologia. Como conseqüência dessa redução, os filósofos passaram a ter um
interesse primordial pelo conhecimento das estruturas e formas de nossa
consciência e também pelo seu modo de expressão, isto é, a linguagem.
O interesse pela consciência reflexiva ou pelo sujeito do conhecimento deu
surgimento a uma corrente filosófica conhecida como fenomenologia, iniciada pelo filósofo alemão Edmund Husserl. Já o interesse pelas formas e pelos modos
de funcionamento da linguagem corresponde a uma corrente filosófica conhecida
como filosofia analítica cujo início é atribuído ao filósofo austríaco Ludwig
Wittgenstein.
No entanto, a atividade filosófica não se restringiu à teoria do conhecimento, à
lógica, à epistemologia e à ética. Desde o início do século XX, a História da
Filosofia tornou-se uma disciplina de grande prestígio e, com ela, a história das
idéias e a história das ciências.
Desde a Segunda Guerra Mundial, com o fenômeno do totalitarismo - fascismo,
nazismo, stalinismo -, com as guerras de libertação nacional contra os impérios
coloniais e as revoluções socialistas em vários países; desde os anos 60, com as
lutas contra ditaduras e com os movimentos por direitos (negros, índios,
mulheres, idosos, homossexuais, loucos, crianças, os excluídos econômica e
politicamente); e desde os anos 70, com a luta pela democracia em países
submetidos a regimes autoritários, um grande interesse pela filosofia política
ressurgiu e, com ele, as críticas de ideologias e uma nova discussão sobre as
relações entre a ética e a política, além das discussões em torno da filosofia da
História.
Atualmente, um movimento filosófico conhecido como desconstrutivismo ou
pós-modernismo, vem ganhando preponderância. Seu alvo principal é a crítica
de todos os conceitos e valores que, até hoje, sustentaram a Filosofia e o
pensamento dito ocidental: razão, saber, sujeito, objeto, História, espaço, tempo,
liberdade, necessidade, acaso, Natureza, homem, etc.
Quais são os campos próprios em que se desenvolve a reflexão filosófica nestes
vinte e cinco séculos? São eles:
Ontologia ou metafísica: conhecimento dos princípios e fundamentos últimos de
toda a realidade, de todos os seres;
Lógica: conhecimento das formas gerais e regras gerais do pensamento correto e
verdadeiro, independentemente dos conteúdos pensados; regras para a
demonstração científica verdadeira; regras para pensamentos não-científicos;
regras sobre o modo de expor os conhecimentos; regras para a verificação da
verdade ou falsidade de um pensamento, etc.;
Epistemologia: análise crítica das ciências, tanto as ciências exatas ou
matemáticas, quanto as naturais e as humanas; avaliação dos métodos e dos
resultados das ciências; compatibilidades e incompatibilidades entre as ciências;
formas de relações entre as ciências, etc.;
Teoria do conhecimento ou estudo das diferentes modalidades de conhecimento
humano: o conhecimento sensorial ou sensação e percepção; a memória e a
imaginação; o conhecimento intelectual; a idéia de verdade e falsidade; a idéia de
ilusão e realidade; formas de conhecer o espaço e o tempo; formas de conhecer relações; conhecimento ingênuo e conhecimento científico; diferença entre
conhecimento científico e filosófico, etc.;
Ética: estudo dos valores morais (as virtudes), da relação entre vontade e paixão,
vontade e razão; finalidades e valores da ação moral; idéias de liberdade,
responsabilidade, dever, obrigação, etc.;
Filosofia política: estudo sobre a natureza do poder e da autoridade; idéia de
direito, lei, justiça, dominação, violência; formas dos regimes políticos e suas
fundamentações; nascimento e formas do Estado; idéias autoritárias,
conservadoras, revolucionárias e libertárias; teorias da revolução e da reforma;
análise e crítica das ideologias;
Filosofia da História: estudo sobre a dimensão temporal da existência humana
como existência sociopolítica e cultural; teorias do progresso, da evolução e
teorias da descontinuidade histórica; significado das diferenças culturais e
históricas, suas razões e conseqüências;
Filosofia da arte ou estética: estudo das formas de arte, do trabalho artístico;
idéia de obra de arte e de criação; relação entre matéria e forma nas artes; relação
entre arte e sociedade, arte e política, arte e ética;
Filosofia da linguagem: a linguagem como manifestação da humanidade do
homem; signos, significações; a comunicação; passagem da linguagem oral à
escrita, da linguagem cotidiana à filosófica, à literária, à científica; diferentes
modalidades de linguagem como diferentes formas de expressão e de
comunicação;
História da Filosofia: estudo dos diferentes períodos da Filosofia; de grupos de
filósofos segundo os temas e problemas que abordam; de relações entre o
pensamento filosófico e as condições econômicas, políticas, sociais e culturais de
uma sociedade; mudanças ou transformações de conceitos filosóficos em
diferentes épocas; mudanças na concepção do que seja a Filosofia e de seu papel
ou finalidade.

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Capítulo 5.

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