segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Ampliando nossa idéia de razão



A idéia de razão que apresentamos até aqui e que constitui o ideal de
racionalidade criado pela sociedade européia ocidental sofreu alguns abalos
profundos desde o início do século XX.
Aqui, vamos apenas oferecer alguns exemplos dos problemas que a Filosofia
precisou enfrentar e que levaram a uma ampliação da idéia da razão.
Um primeiro abalo veio das ciências da Natureza ou, mais precisamente, da física
e atingiu o princípio do terceiro-excluído. A física da luz (ou óptica) descobriu
que a luz tanto pode ser explicada por ondas luminosas quanto por partículas
descontínuas. Isso significou que já não se podia dizer: “ou a luz se propaga por
ondas contínuas ou se propaga por partículas descontínuas ”, como exigiria o
princípio do terceiro-excluído, mas sim que a luz pode propagar-se tanto de uma
maneira como de outra.
Por sua vez, a física atômica ou quântica abalou o princípio da razão suficiente.
Vimos que esse princípio afirma que, conhecido A, posso determinar como dele necessariamente resultará B, ou, conhecido B, posso determinar necessariamente
como era A que o causou. Em outras palavras, conhecido o estado E de um
fenômeno, posso deduzir como será o estado E2 ou E3 e vice-versa: conhecidos
E3 e E2 posso dizer como era o estado E. Ora, a física dos átomos revelou que
isso não é possível, que não podemos saber as razões pelas quais os átomos se
movimentam, nem sua velocidade e direção, nem os efeitos que produzirão.
Esses dois problemas levaram a introduzir um novo princípio racional na
Natureza: o princípio da indeterminação. Assim, o princípio da razão suficiente
é válido para os fenômenos macroscópicos, enquanto o princípio da
indeterminação é válido para os fenômenos em escala hipermicroscópica.
Um outro problema veio abalar o princípio da identidade e da não-contradição. A
física sempre considerou que a Natureza obedece às leis universais da razão
objetiva sem depender da razão subjetiva. Em outras palavras, as leis da Natureza
existem por si mesmas, são necessárias e universais por si mesmas e não
dependem do sujeito do conhecimento.
Contudo, a teoria da relatividade mostrou que as leis da Natureza dependem da
posição ocupada pelo observador, isto é, pelo sujeito do conhecimento e,
portanto, para um observador situado fora de nosso sistema planetário, a
Natureza poderá seguir leis completamente diferentes, de tal modo que, por
exemplo, o que é o espaço e o tempo para nós poderá não ser para outros seres
(se existirem) da galáxia; a geometria que seguimos pode não ser a que tenha
sentido noutro sistema planetário; o que pode ser contraditório para nós poderá
não ser para habitantes de outra galáxia e assim por diante.
Um outro problema, também atingindo os princípios da razão, foi trazido pela
lógica. O lógico alemão Frege apresentou o seguinte problema: quando digo “a
estrela da manhã é a estrela da tarde” estou caindo em contradição e perdendo o
princípio da identidade. No entanto, “estrela da manhã” é o planeta Vênus e
“estrela da tarde ” também é o planeta Vênus; dessa perspectiva, não há
contradição alguma no que digo. É preciso, então, distinguir em nosso
pensamento e em nossa linguagem três níveis: o objeto a que nós nos referimos,
os enunciados que empregamos e o sentido desses enunciados em sua relação
com o objeto referido. Somente dessa maneira podemos manter a racionalidade
dos princípios da identidade, da não-contradição e do terceiro-excluído.
Enfim, um outro tipo de problema foi trazido com o desenvolvimento dos
estudos da antropologia, que mostraram como outras culturas podem oferecer
uma concepção muito diferente da que estamos acostumados sobre o pensamento
e a realidade. Isso não significa, como imaginaram durante séculos os
colonizadores, que tais culturas ou sociedades sejam irracionais ou pré-racionais,
e sim que possuem uma outra idéia do conhecimento e outros critérios para a
explicação da realidade.
Como a palavra razão é européia e ocidental, parece difícil falarmos numa outra
razão, que seria própria de outros povos e culturas. No entanto, o que os estudos
antropológicos mostraram é que precisamos reconhecer a “nossa razão” e a
“razão deles”, que se trata de uma outra razão e não da mesma razão em
diferentes graus de uma única evolução.
Indeterminação da Natureza, pluralidade de enunciados para um mesmo objeto,
pluralidade e diferenciação das culturas foram alguns dos problemas que
abalaram a razão, no século XX. A esse abalo devemos acrescentar dois outros.
O primeiro deles foi trazido por um não-filósofo, Marx, quando introduziu a
noção de ideologia; o segundo também foi trazido por um não-filósofo, Freud,
quando introduziu o conceito de inconsciente.
A noção de ideologia veio mostrar que as teorias e os sistemas filosóficos ou
científicos, aparentemente rigorosos e verdadeiros, escondiam a realidade social,
econômica e política, e que a razão, em lugar de ser a busca e o conhecimento da
verdade, poderia ser um poderoso instrumento de dissimulação da realidade, a
serviço da exploração e da dominação dos homens sobre seus semelhantes. A
razão seria um instrumento da falsificação da realidade e de produção de ilusões
pelas quais uma parte do gênero humano se deixa oprimir pela outra.
A noção de inconsciente, por sua vez, revelou que a razão é muito menos
poderosa do que a Filosofia imaginava, pois nossa consciência é, em grande
parte, dirigida e controlada por forças profundas e desconhecidas que
permanecem inconscientes e jamais se tornarão plenamente conscientes e
racionais. A razão e a loucura fazem parte de nossa estrutura mental e de nossas
vidas e, muitas vezes, como por exemplo no fenômeno do nazismo, a razão é
louca e destrutiva.
Fatos como esses - as descobertas na física, na lógica, na antropologia, na
história, na psicanálise - levaram o filósofo francês Merleau-Ponty a dizer que
uma das tarefas mais importantes da Filosofia contemporânea deveria ser a de
encontrar uma nova idéia da razão, uma razão alargada, na qual pudessem
entrar os princípios da racionalidade definidos por outras culturas e encontrados
pelas descobertas científicas.
Esse alargamento é duplamente necessário e importante. Em primeiro lugar,
porque ele exprime a luta contra o colonialismo e contra o etnocentrismo - isto é,
contra a visão de que a “nossa” razão e a “nossa” cultura são superiores e
melhores do que as dos outros povos. Em segundo lugar, porque a razão estaria
destinada ao fracasso se não fosse capaz de oferecer para si mesma novos
princípios exigidos pelo seu próprio trabalho racional de conhecimento.

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 2, Capítulo 1.

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