quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A Razão - Unidade 2



Os vários sentidos da palavra razão

Nos capítulos precedentes, insistimos muito na afirmação de que a Filosofia se
realiza como conhecimento racional da realidade natural e cultural, das coisas e
dos seres humanos. Dissemos que ela confia na razão e que, hoje, ela também
desconfia da razão. Mas, até agora, não dissemos o que é a razão, apesar de ser
ela tão antiga quanto a Filosofia.
Em nossa vida cotidiana usamos a palavra razão em muitos sentidos. Dizemos,
por exemplo, “eu estou com a razão”, ou “ele não tem razão”, para significar que
nos sentimos seguros de alguma coisa ou que sabemos com certeza alguma coisa.
Também dizemos que, num momento de fúria ou de desespero, “alguém perde a
razão”, como se a razão fosse alguma coisa que se pode ter ou não ter, possuir e
perder, ou recuperar, como na frase: “Agora ela está lúcida, recuperou a razão”.
Falamos também frases como: “Se você me disser suas razões, sou capaz de fazer
o que você me pede”, querendo dizer com isso que queremos ouvir os motivos
que alguém tem para querer ou fazer alguma coisa. Fazemos perguntas como:
“Qual a razão disso?”, querendo saber qual a causa de alguma coisa e, nesse
caso, a razão parece ser alguma propriedade que as próprias coisas teriam, já que
teriam uma causa.
Assim, usamos “razão” para nos referirmos a “motivos” de alguém, e também
para nos referirmos a “causas” de alguma coisa, de modo que tanto nós quanto as
coisas parecemos dotados de “razão”, mas em sentido diferente.
Esses poucos exemplos já nos mostram quantos sentidos diferentes a palavra
razão possui: certeza, lucidez, motivo, causa. E todos esses sentidos encontramse
presentes na Filosofia.
Por identificar razão e certeza, a Filosofia afirma que a verdade é racional; por
identificar razão e lucidez (não ficar ou não estar louco), a Filosofia chama nossa
razão de luz e luz natural; por identificar razão e motivo, por considerar que sempre agimos e falamos movidos por motivos, a Filosofia afirma que somos
seres racionais e que nossa vontade é racional; por identificar razão e causa e por
julgar que a realidade opera de acordo com relações causais, a Filosofia afirma
que a realidade é racional.
É muito conhecida a célebre frase de Pascal, filósofo francês do século XVII: “O
coração tem razões que a razão desconhece”. Nessa frase, as palavras razões e
razão não têm o mesmo significado, indicando coisas diversas. Razões são os
motivos do coração, enquanto razão é algo diferente de coração; este é o nome
que damos para as emoções e paixões, enquanto “razão” é o nome que damos à
consciência intelectual e moral.
Ao dizer que o coração tem suas próprias razões, Pascal está afirmando que as
emoções, os sentimentos ou as paixões são causas de muito do que fazemos,
dizemos, queremos e pensamos. Ao dizer que a razão desconhece “as razões do
coração”, Pascal está afirmando que a consciência intelectual e moral é diferente
das paixões e dos sentimentos e que ela é capaz de uma atividade própria não
motivada e causada pelas emoções, mas possuindo seus motivos ou suas próprias
razões.
Assim, a frase de Pascal pode ser traduzida da seguinte maneira: Nossa vida
emocional possui causas e motivos (as “razões do coração”), que são as paixões
ou os sentimentos, e é diferente de nossa atividade consciente, seja como
atividade intelectual, seja como atividade moral.
A consciência é a razão. Coração e razão, paixão e consciência intelectual ou
moral são diferentes. Se alguém “perde a razão” é porque está sendo arrastado
pelas “razões do coração”. Se alguém “recupera a razão ” é porque o
conhecimento intelectual e a consciência moral se tornaram mais fortes do que as
paixões. A razão, enquanto consciência moral, é a vontade racional livre que não
se deixa dominar pelos impulsos passionais, mas realiza as ações morais como
atos de virtude e de dever, ditados pela inteligência ou pelo intelecto.
Além da frase de Pascal, também ouvimos outras que elogiam as ciências,
dizendo que elas manifestam o “progresso da razão ”. Aqui, a razão é colocada
como capacidade puramente intelectual para conseguir o conhecimento
verdadeiro da Natureza, da sociedade, da História e isto é considerado algo bom,
positivo, um “progresso”.
Por ser considerado um “progresso”, o conhecimento científico é visto como se
realizando no tempo e como dotado de continuidade, de tal modo que a razão é
concebida como temporal também, isto é, como capaz de aumentar seus
conteúdos e suas capacidades através dos tempos.
Algumas vezes ouvimos um professor dizer a outro: “Fulano trouxe um trabalho
irracional; era um caos, uma confusão. Incompreensível. Já o trabalho de beltrano
era uma beleza: claro, compreensível, racional”. Aqui, a razão, ou racional, significa clareza das idéias, ordem, resultado de esforço intelectual ou da
inteligência, seguindo normas e regras de pensamento e de linguagem.
Todos esses sentidos constituem a nossa idéia de razão. Nós a consideramos a
consciência moral que observa as paixões, orienta a vontade e oferece finalidades
éticas para a ação. Nós a vemos como atividade intelectual de conhecimento da
realidade natural, social, psicológica, histórica. Nós a concebemos segundo o
ideal da clareza, da ordenação e do rigor e precisão dos pensamentos e das
palavras.
Para muitos filósofos, porém, a razão não é apenas a capacidade moral e
intelectual dos seres humanos, mas também uma propriedade ou qualidade
primordial das próprias coisas, existindo na própria realidade. Para esses
filósofos, nossa razão pode conhecer a realidade (Natureza, sociedade, História)
porque ela é racional em si mesma.
Fala-se, portanto, em razão objetiva (a realidade é racional em si mesma) e em
razão subjetiva (a razão é uma capacidade intelectual e moral dos seres
humanos). A razão objetiva é a afirmação de que o objeto do conhecimento ou a
realidade é racional; a razão subjetiva é a afirmação de que o sujeito do
conhecimento e da ação é racional. Para muitos filósofos, a Filosofia é o
momento do encontro, do acordo e da harmonia entre as duas razões ou
racionalidades. 

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 2, Capítulo 1.

Obs: Gente, peço desculpas à vocês pelo motivo de eu ter esquecido de avisar que os outros textos do livro Convite à filosofia, que eu postei no blog, eram da Unidade 1, agora estão sendo da Unidade 2, por isso começou do capítulo 1 de novo. beijos :) 

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